TEXTO CURATORIAL EXPOSIÇAO COLOMBIA AFORA
Carlos Monroy e Julia Lima
Querido Wagner Moura,
CARTA ABERTA AO WAGNER MOURA
São Paulo, 10 de Julho de 2017
Antes de começar gostaria de expressar meu mais profundo respeito pelo seu trabajo como ator e ativista. Minha carta não quer vir como uma afronta, mas como um começo de diálogo que espero ser frutífero para ambas partes. Lhe escrevo como um artista que quer dialogar com otro artista, para enten- der seu posicionamento, suas contradições e fazer amizade. Quero nesta carta expressar algunas ideias e questionamentos que vem rondando minha cabeça, mi vida e meus posicionamentos artísticos faz tempo, que estão atrelados à minha práxis como agente cultural e que podem ser expressados ao colocar algu- mas problemáticas que vejo na sua participação no seriado Narcos da NETFLIX.Antes disso, gostaria de ressaltar que nós dois compartimos a crítica mais corriente possível, o conhecido insulto do caviar de esquerda.Assim, quiero que saiba que estou do mesmo lado e que o que me move a escrivir este texto é a ansiedade de diálogo de igual para igual, seres humanos com contradições.
Mi nombre es Carlos Monroy, artista visual, performer e agente cultural colombiano, residente no brasil há 9 anos.Vim para aqui pelos mismos motivos que você foi para a Colômbia há algun tiempo: compromissos pro ssionales y acadêmicos que permitiram aprofundar meus conhecimentos em português, me submer- gir na cultura brasileira e pesquisar as implicações de estar em um local alheio. No entanto, esse trânsito que começou com uma temporada de 1 año tem se estendido por quase uma década, e tem modi cado minha identidad, minha produção e minha vida como um todo. Entiendo o Brasil como meu lar, sua si- tuação me afeta como ser humano e, especialmente, como migrante sin derechos políticos reais; assim como também me afeta a forma com que o país é visto e entendido desde dentro e fora – mesmo esse fora siendo mi país materno. Amo o Brasil, tanto como para não deixá-lo, e claramente amo a Colômbia com toda a força daquele que vive fora dela, sabendo de seus problemas e história.
Segundo várias entrevistas, você sentiu tanta proximidade com a Colômbia que decidiu levar sua família morar com você em quanto desenvolviam o seriado. Esta informação me permite pensar que a sua inti- midad com a minha cultura é tão grande e calorosa quanto a minha com a sua.Tanto que provavelmente você, como yo, acha hoje que somos países hermanos, tão próximos que chega assustar, que somos os mesmos com fantasias folclóricas diferentes. É isso que me desconcertou ao ver que, mesmo tendo pas- sado tempo de qualidade no país, você tenha concordado em realizar um papel que revive e recoloca dinâmicas hegemônicas e preconceitos sobre o território e os corpos que nele habitam. Ou que tenha concordado com um papel que también idealiza la gura del “patrão do mal”, transformando-o em una espécie de Robin Hood que, mesmo sendo a gura de um anti-herói que morre na sua própria lei, arqui- teta o tra co, a corrupção e a violência como saídas plausíveis,“exemplares” e admiráveis para as gerações que – por causa de nossos governos tra cantes, corruptos e violentos – não recebem formação histórica e acabam por confundir la realidade a su consequências com a cción.
Yo não quiero entrar em juicios de valor poco profundos, como seu sotaque na serie – que sei que mes- mo bastante criticado, você sofreu tanto quanto eu para neutralizar (coisa que ainda não quero conse- guir mesmo) –, ou os constantes equívocos históricos que os roteiristas e diretor decidiram que eram melhores para trama alegando licença poética: entre outros colombianos, o próprio lho do Escobar
escreveu listas nas quais ele declara que “En nombre de mi país y en honor a la verdad real de los hechos acontecidos me veo en la obligación de exponer lo gravísimos errores de una serie que se auto proclama como veraz, cuando dista muchísimo de serlo, insultando así la historia de toda una nación y de muchísi- mas víctimas y famílias”.
Com minhas palabras, no quiero decir que seja um equivoco crasso falar sobre o narcotrá co ou guras como Pablo Escobar, pois estes personages e problemas são a realidade de nuestros países que precisam urgentemente ser tratadas, discutidas e revistas – não necessariamente atacadas, mas sim com o posicio- namento e a forma con que elas tentam ser aproximadas. Em um pais com más de 50 anos de guerra, con- sidero como humanista que estes temas devem ser imprescindivelmente discutidos desde las narrativas de las vítimas – mesmo que isto sirva para que tais questões sejam exploradas pelo capital, ponto difícil e passível de discusión. En otras palabras, é possível hacer un seriado, lme, obra plástica ou o que seja, que ainda dando os mesmos resultados comerciais que a história do vilão idealizado, conte o real dano cau- sado, o sofrimento, o horror e as perdas de toda uma nação assolada pelas práticas colonialistas de uma guerra às drogas que você mesmo diz ser totalmente ine caz, e a das quais não se consegue desvincular. Eu também preferiria um junkie vomitando no meu milk-shake que ver mais juventud negra e periférica morrir en las favelas.
São 50 anos de guerra, com mais de 220.000 vitimas fatais até 2013, todas vinculadas direta o indireta- mente ao trabalho do anti-herói que você encarnou. Sei que deve resultar chato ler queixas e criticas de alguém que você no conhece, mas para mi y meus compatriotas también é chato que, a cada vez que saímos do país, somos relacionados a tal estigma em alfandegas, fronteras y bares (ao ponto de estar sam- bando e um cara, do nada, saber que você é colombiano e te gritar “Porra, Escobar, DA HORA! É nois!”). E isso incomoda não só por que o cara ache “da hora”, mas porque nós colombianos estamos atrelados a essa história de tal forma que algum conhecido, até mesmo na nossa família, foi vitima ou perpetrador. Por ejemplo, se retomamos o con ito pelo controle de território e poder, minha abuela foi vitima da violência de começo del siglo e deslocada do seu povoado original; mas volvendo para os 1980, só na minha familia, três dos meus primos foram galácticos – crianças viciadas pelos carteis para servir como aviãozinho e distribuidores do comercio local de drogas, e se tornaram moradores de rua depois da queda dos carteis. Ou mesmo um amigo que cou órfão de pai e mãe por causa da guerra pelo controle dos estupefacientes .
Você pensará “tá, legal, mas o que você esta fazendo então que eu não consegui fazer para mudar aquele preconceito e visões sobre a Colômbia?”. Não só eu, mas o governo como um todo está intentando as- sumir una posición paci ca e melhores relacionamentos internos y con outros países – e reconheço isto sem ser fã do governo atual.Assim, se assinou um tratado de paz que, mesmo não acabando com o con- ito ou o narcotrá co, é um primeiro passo. E eu, aqui tão longe e tão perto, tento em conjunto com 10 artistas, 7 colombianos residentes em SP e 3 brasileiros residentes o ex-residentes na Colômbia, colocar um grão de areia fazendo a curadoria de uma exposição para mostrar não só que somos muito mais do que aquilo, pero que también somos frutos de aquilo.Além disso, que nossos trânsitos entre os dois países, nos fazem ser produtos de ambas histórias, de ambos contextos, da ambos pesares e alegrias; em resumo, de uma única nación que ca na lacuna entre ambos territórios.
Pensando em como realizar e mostrar trabajos sobre violência explícita, sin cair no perigo da estética da fome, mas ainda assim impactando pelo potencial critico contra a manipulação que os meios de comu- nicação exercem nas nuestras leituras sobre los fatos reales, os trabalhos do manizalita Andrés Suarez e do paulista Danilo Volpato dialogam usando o mesmo elemento: jornais do mesmo dia de ambas nações. Andrés apaga a mesma noticia uma e outra vez e vai pendurando folhas de jornal apagadas em um varal, vestindo um aparato similar ao de um medico legista ou azoguero, que extermina nossa memoria dos
fatos repetidamente – algo sintomático de países como os nossos, onde o ensino da historia virou uma herramienta ideológica e se fez inexistente nas aulas do ensino público básico e médio, condenando-nos às logicas da colonización por la eternidad próxima. Danilo, por sua vez, cria um painel que nos afronta com as imagenes espetaculares da impressa marrom, o amarillista en español, revelando que a realidade tem um tom, luz e matiz especí cos e que a manipulação que sofremos como espectadores resulta inminente.
É claro que essa realidade, essas 220.000 vitimas, deixaram de nos incomodar hace mucho tempo: estamos insensibilizados por esses mesmo médios que nos confundem com suas explosões de aviões e helicóp- teros cargados de coca, em quanto defendem a imagem de um presidente ilegítimo e um ex-presidente nefasto. Nilen Cohen então disfruta de um sanduichinho, enquanto as noticias Caracol do 27 de agosto de 2011 se re etem sobre seu corpo; noticias que, na teoria, estando tão longe, não a atingem, mas que na superfície e no fundo a de nem aqui. Porque se vê que não somos só aquilo, mas assim somos lidos: samba, favela, futebol e carnaval.
Pero, somos mais, né? Sabemos disso! Entonces, o que somos se somos mais, e sobretodo, que somos se temos essa experiência transnacional que compartimos com você? (Que nos faz sentir nem de aqui nem de aculla!) Na Colombia se diz que “el tigre no es como lo pintan”, talvez por isso Flavia Mielnik, brasileira residente em Bogotá, decidiu desmembrar um mapa do país sobre o corpo de um tigre, desenhando nue- vas manchas sobre o animal listrado que aparece de maneira tão frequente ilustrando os cobertores das camas colombianas – e me atreveria dizer latino-americanas! Então talvez podamos nos de nir como un tigre, um tigre que não consegue mudar suas listras, manchas que quando se unem para formar a imagem do pais só conseguem ter tom de aguadas vermelhas.
Beleza, mas já que não conseguimos mudar as listras, como nos apropriamos delas para senti-las nossas? O que fazemos para entendê-las se nem sequer entendemos onde elas estão no nosso corpo? Maria Margarita Jaimes, Alejandro Vasquéz e Sergio Pinzón entendem bem essa desorientação. Margarita com- põe colagens que propõem uma noção de estar perdido em um basto território que, mesmo não fazendo sentido, se confunde com a realidade para outorgar uma identidade de explorador a esse corpo que os habita. Por outro lado,Alejandro anula o rostro do sujeito do olhar fotográ co em um local inidenti cable, a não ser pela referencia genérica ao oceano atlântico ou a lírica epígrafe que esfaqueia a memoria desse registro. Já Sergio vai pelo anverso, usando imagenes claramente reconhecíveis – impressas em camisetas, toalhas e souvenires próprios do turismo que explora a paisaje idealizada pelo viajante. O artista confor- ma uma nova realidade, um novo paraíso domestico no varal do quintal de casa, que longe de ser real só atinge nossos mais profundos desejos de perfeição destes nossos “buenos vivideros”.
E como “Moro no pais tropical, abençoado por deus e bonito por natureza”, aquele mesmo do varal – mas honestamente não o conhecemos nem o entendemos –, Adler Murada, Ivonne Villamil e Ingrid Cuestas propõem nuevos mapeamentos sociais, grá cos e musico-visuais que querem, em vez de nos situar no típico “você esta aqui”, nos envolver para que (mismo sem entender donde estamos) consigamos nos aproximar das lógicas do lugar, das pessoas, do seu conhecimento, do seu ritmo, das suas tradições e do seu imaginário. Seja em um informativo de meteoritos que nunca caíram mas que são o re exo terrestre da abóboda celestial no Rio de Janeiro; um monte de livros velhos que transitam pela ruas de Bogotá para ser comprados por leitores arcaicos ou estudantes e pesquisadores quebrados; sejam retratos musicaliza- dos da grande coreogra a da cidade de São Paulo, do peso do quente samba camionhero das 16 toneladas até o instinto de reprodução das moscas que caíram na sua sopa.
E a violência desses territórios, onde ca? Pode se falar dela com ela própria? Consideramos que, olhando para nossos hábitos mais próximos – sem necessariamente apontar as grandes explosões ma osas – e nos aproximando verazmente naqueles que quase todos compartilhamos diariamente (como a comida),
encontramos nossos mais atrozes jogos vorazes. Basta ver rapidamente a instalação “A carne não vem em bandeja”, que tenta reparar o dano, revigorando a violência que gera um impacto no espectador mais violento ainda – me gusta pensar que esta nos lembra do lastro de 50 anos de violência e tal vez do de toda humanidad .
Para concluir esta primeira carta, com a qual honestamente espero estabelecer uma conversa, quero citar as palavras do teórico cubano Gerardo Mosquera que, em 2000, tentou entender as lógicas da arte desde américa latina: “Es necesario también invertir la corriente. No por darle la vuelta a un esquema binario de transferencia, desa ando su poder, sino por contribuir a pluralizar para enriquecer, transformando la situación prevaleciente.”
Quero me despedir com três gestos: primeiro, convida-lo para ver a mostra ou o registro dos trabalhos. Segundo, lembrar que há uma série de temáticas não tocadas na carta, mas presentes na exposição, e das quais poderíamos falar, como: a exclusão do brasil do território latino-americano pela própria desidenti- dad dos brasileños e a omissão dos hispano-americanos; o auge da migração latina ao Brasil, que expõe e revela a condição colonizadora do país frente a esses outros territórios; a não inclusão social de outras migrações, para além das europeias brancas, no mapa cultural brasileiro e o preconceito contra refugiados e migrantes trabalhistas como bolivianos, haitianos e nigerianos que impõem jerarquizaciones do que é um “bom migrante”, entre outras.Terceiro, animá-lo a construir pontes entre nosso países, pontes além dessas imagens já feitas, pontes más positivas e e cazes que, sem ser tristes – como o caso da chapecoense –, consigam mostrar a nossas sociedades como somos iguais na diferencia, como somos primos irmãos e como nosso destino estará sempre atrelado por um série de caminhos indígenas que foram apagados há 500 anos pelas imposições coloniais que ainda hoje ecoam cristalizadas em nossos corpos.
Afetivamente,
Carlos Monroy ArtistaVisual e Performer
Pd. Essa carta foi escrita em portuñol, conscientemente, pelo tanto seus errores não o são! Isto como referência ao trabalho Hoi, participação especial do coletivo entre Flavia Mielnik, Christian Casablanca e Santiago Diaz, que enfatiza o encontro lacunar entre o Brasil e a Colômbia.
Pd2. Esta carta fue escrita com intermediação de Julia Lima, curadora paulistana que me ayudó para que meu “homem cordial” carioca – aquele que fala desde a paixão cega – não falasse mais alto que minha “malícia indígena” bogotana. Não só para manter a coherencia narrativa do texto, mas como interlocutora que se faz as mesmas perguntas.
Pd3. Claramente, nem a exposição nem esta carta são su cientes nem perfeitas para gerar essas novas leituras e pontes cultuais necessárias à descolonização e à criação de nuevas imágenes para nossas países. Motivo pelo qual peço sua critica e pensamentos, ao redor do aqui proposto, na sua resposta.